Cumprem-se 33 anos sobre o 25 de Abril. Já poucos se recordam de como era a vida na sociedade portuguesa até aí.
Este ano as comemorações do 25 de Abril chegam assombradas pela nomeação de António Oliveira Salazar como o “O Grande Português”
00:00 | sábado, 21 ABR 07 |  |  |
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Decorridos 33 anos do golpe militar que pôs fim ao Estado Novo (durante o qual, colunas rebeldes chegam a obedecer ordeiramente aos sinais de trânsito, capitão Salgueiro Maia), as comemorações da data tendem paulatinamente a confundir-se com as do 5 de Outubro (dia da implantação da República, em 1910), se não no calendário pelo menos na pompa e numa ou outra circunstância. Com uma diferença: do 25 de Abril há um pouco mais de sobreviventes. Este ano, chega assombrado pela entrega da medalha de ouro a António Oliveira Salazar no concurso televisivo “Os Grandes Portugueses”.
As interpretações sociológicas, políticas e ideológicas do facto, foram muitas e variadas. Uns defenderam, simplesmente, que o natural de Santa Comba Dão não devia estar na lista; outros desvalorizaram o resultado, considerando-o inexpressivo (contas feitas, se o vencedor chegou aos 41% e o número total de votos contabilizados não ultrapassou os 159.245, então, estiveram com ele apenas 0,6% da população portuguesa).
Houve quem falasse em manifestação de protesto, sem vínculo salazarista, pelo rumo actual do país; quem ficasse mais chateado pelo segundo lugar de Cunhal do que pelo primeiro de Oliveira; e alguma extrema-direita, mesmo cantando vitória, anunciou considerar o programa uma ofensa à História de Portugal (curiosamente, alguma esquerda disse o mesmo). Por fim, houve quem viesse lembrar que o homem tinha vencido um concurso, não tinha ganho eleições.
 DR António de Oliveira Salazar: amado por uns, odiado por outos |
O que seria uma impossibilidade. Morreu há 37 anos, a 27 de Julho de 1970, e mandou oficialmente no país entre 1932 e 1968. Nesse ano passa o testemunho ao discípulo Marcelo Caetano, e apenas porque a tal cadeira resolve pregar-lhe a partida de se encontrar fora do sítio. À queda, grave, sobreveio, operado e refeito do susto, uma hemorragia cerebral.
Incapacitado, vive até ao fim na residência oficial (segundo o jornalista Fernando Dacosta, por sugestão da governanta Maria), numa grotesca encenação do poder que já não tem. Ministros e acólitos prestaram-se ao enredo, visitando-o e dirigindo-se-lhe como se do Presidente do Conselho se tratasse ainda. E enquanto em Portugal decorria esta farsa caseira, lá fora Luther Ling era assassinado em Memphis, rebentava a guerra do Vietname, Paris enfrentava a intempérie de Maio e em Praga acabava a Primavera, Bobby Kennedy era baleado em Los Angeles, Nixon chegava a Presidente dos EUA, Neil Armstrong pisava a lua, Beckett ganhava o Nobel, os Beatles zangavam-se de vez, etc., etc., etc. O mundo mantinha o seu curso imparável; por cá chegava ao fim o reinado de Dona Maria.
Nem tudo era mau
Não se pense que tudo era mau. Até final dos anos 60, Portugal manteve-se, em muitos aspectos, na «pole position» dos países europeus ocidentais (ver António Barreto, "Mudança Social em Portugal: 1960-2000", in “Portugal Contemporâneo”, coordenação de António Costa Pinto, Dom Quixote, 2004). Assim: era o único império colonial sobrevivente; podia orgulhar-se do ditador com mais anos no poder; apresentava as mais altas taxas de analfabetismo e mortalidade infantil; o menor número de médicos e enfermeiros por habitante; o mais baixo rendimento por habitante; a menor produtividade no trabalho; o menor número de estudantes no ensino básico e superior; o menor número de pessoas abrangidas pelos sistemas de segurança social, a menor industrialização e a maior população agrícola. No fundo, no fundo, números à parte, tratava-se de um paraíso verde. Além das paisagens bucólicas e das viúvas de portentos buços, havia Fátima, havia fado e havia futebol. E no que toca a futebol, Eusébio era o mais que tudo.
Tão mais que tudo, que Salazar lhe vetou a carreira internacional, informando-o, tão simplesmente, de que ele era “património do Estado”.
Só os portugueses em crise de meia-idade, ou já refeitos dela, se podem lembrar de como era antes. E a verdade é que tinha pouca graça. Antes. Claro que nos podemos rir hoje da licença de isqueiro, obrigatória desde os anos 30 e só abolida em Maio de 1970 pelo decreto-lei 237/70. Claro que mesmo os incondicionais de Chomsky ou Michael Moore já não terão de ir ao Ultramar para beber um gole pecaminoso de Coca-Cola, só comercializada entre nós a partir de 1977. Em Portugal Continental, como se dizia, fora proibida nos anos 30, dela só sobrando a prova dos dotes publicitários de Pessoa que lhe inventara um slogan: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.
Podemo-nos rir, ainda, do Decreto-Lei nº 31247 de Maio de 1941, que regulava o uso do fato de banho, zelando “pela moralidade pública (...) no sentido de evitar a corrupção dos costumes”, e que obrigava, para elas, a fato inteiro “sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido na axilas”, e para eles a “calção com corte inteiro, justo à perna e reforço da parte da frente, e justo à cintura cobrindo o ventre”, regras a que os “cabos de mar” tiveram de começar a fechar os olhos quando, na década de 60, turistas bem menos atafulhados de roupa desataram a invadir o Estoril e o Algarve.
Continuamo-nos a rir desta obsessão moralista e bafienta (que fez do iconoclasta José Vilhena o autor mais censurado antes do 25 de Abril), com as calças proibidas às raparigas nos liceus e as gravatas obrigatórias para os rapazes, mais as portarias camarárias em prole do decoro vigente. O escritor Luís Sttau Monteiro, cujo pai foi embaixador em Londres até 1943, ano em que bateu com a porta a Oliveira Salazar, contava que, criança, numa audiência a que assistira, o ditador reparara nas suas botas e lhe perguntara onde as comprara. Quando lhe respondeu que fora em Londres, este comentara: “Modernices! Modernices!”
Menos motivos para rir
 DR A censura e a polícia política marcaram o antigo regime |
O sorriso começa a amarelecer quando nos lembramos das cargas da polícia de choque, como as do Verão de 1969, nos Salesianos do Estoril (num festival que misturava bandas rock e os chamados cantores de intervenção), apesar da forma pícara como José Cid recorda os acontecimentos: “uma das cenas mais impressionantes foi a polícia batendo num grupo de turistas japoneses. Quando os policiais começaram a agredir os jovens, que estavam ali pacificamente, numa de música, os japoneses puxaram das máquinas fotográficas e começaram a tirar fotografias; assim que a polícia viu aquilo... "máquinas para cá"“. O sorriso desmaia à medida em que recordamos o milhão e meio de imigrantes obrigados a dar o salto, entre 1960 e 1973, sangria de pobres que o escritor José Cardoso Pires resumiria de forma lapidar: “Da minha terra natal tenho uma definição simplista: deserto de Pedras, Padres e Pedintes. Aldeia emigrada, portanto”.
O sorriso já se foi por completo quando chegamos aos cerca de 10 mil soldados mortos na guerra colonial e, ajudados pelo livro de Ferreira Fernandes “Lembro-me que…” (Oficina do Livro, 2004), nos lembramos, também nós, dos poucos ou nenhuns direitos das mulheres cujas vidas valiam penas de dois anos, como a aplicada a Adélio da Custódia pelo assassínio da mulher Maria Pais Pimenta, explicada assim pelo juiz corregedor do Círculo Judicial de Viseu: “Porque se justifica perfeitamente a reacção do réu contra a mulher adúltera que abandonou o lar, o marido e dois filhos de tenra idade, para seguir um saltimbanco”.
E sem motivo aparente vem-nos à cabeça o drama privilegiado do poeta Alexandre O’Neill, que em Nora Mitrani encontrara “l’amour fou”. Uma francesa de passagem por Lisboa espera agora por ele em Paris, mas a PIDE nega-lhe o passaporte e O’Neill nunca tornará a rever Nora que se suicida em 1961.
Em época de censura
Chegamos assim à parte que está mesmo, mesmo, fora de moda: a censura e a polícia política do regime. Em entrevista a António Ferro, Dezembro de 1932, a propósito dos boatos que punham em causa o bom-nome da polícia, Salazar explicara-se bem: “(…) quero informá-lo de que se chegou à conclusão de que as pessoas maltratadas eram sempre, ou quase sempre, temíveis bombistas, que se recusavam a confessar, apesar de todas as habilidades da polícia, onde tinham escondido as suas armas criminosas e mortais”. Linhas à frente, surge a prova mil vezes repetida sobre a brandura dos meios e a rectidão evidente dos fins: “Eu pergunto a mim próprio (…) se a vida de algumas crianças e de algumas pessoas indefesas não vale bem, não justifica largamente, meia dúzia de safanões a tempo nessas criaturas sinistras”. E nesta “meia dúzia de safanões” se fundaria o mito urbano que continua a rever e a absolver a tortura, desrespeitando os mortos com nome próprio.
 DR A revolução dos cravos foi há 33 anos |
Quanto à censura (uma prática que, em Portugal, verdade seja dita, recua aos tempos da Inquisição praticamente sem interrupções), prévia e de lápis azul em riste, no caso da imprensa, preferia a apreensão ulterior quando se tratava de livros. Segundo a Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, o regime de Salazar/Caetano proibiu cerca de 3300 obras e até o velho Aquilino Ribeiro foi alvo de um processo-crime, pelo crime de ter escrito “Quando os Lobos Uivam”. O Secretariado Nacional de Informação (SNI) mostrava-se quase sempre de uma eficácia imbatível: em 1965, em apenas quatro dias, apreendia 70 mil títulos à Europa-América, em dois anos subtraía à Seara Nova milhares de contos de livros; quanto à editora Minotauro, era simplesmente encerrada.
Música, artes plásticas, filmes (segundo dados recolhidos em www.amordeperdicao.pt, só entre 1964 e 1967 foram apresentados à censura 1301 filmes, dos quais 145 foram proibidos e 693 autorizados com cortes), e TV a preto e branco (a cores só em 1980), nada escapava à mutilação. A justificação para o zelo recuava ao Decreto-Lei 22469 de Março de 1933: “A censura terá somente por fim impedir a subversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”.
Apesar da bondade expressa dos censores, alguns jornalistas insistiam em desorientar a sociedade. Um dia, no “República”, Vítor Direito discorria a propósito do estado do tempo: “Manhã de nevoeiro transforma a cidade (…) Não se vê um palmo à frente do nariz (…) Andam por aí certos senhores, feitos meteorologistas de trazer por casa, a prever “boas abertas”. Mas o nevoeiro persiste”.
Afinal, eram tempos divertidos. Acabaram com o 25 de Abril.
* In Expresso