quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Texto FABULOSO *

Foi em Setúbal, numa distante tarde de Agosto, que te estreaste na equipa principal da Académica. Faz hoje precisamente 20 anos. Para trás ficara um percurso imaculado pelos escalões de formação da Briosa. O perfume de um futebol só o alcance dos predestinados. A classe e o fulgor de um executante muito, muito acima da média. Com lugar de honra no Olimpo dos eleitos.

No Santa Cruz era a dureza do piso, a poeira incomestível que os olhos absorviam impiedosamente, a vontade de jogar, o exemplo de um companheirismo sem igual, a demonstração inequívoca da grandeza de uma inolvidável escola de vida, a constante aprendizagem com os mestres, o respeito pelos outros, o sublimar da tradição de um balneário herdado de sucessivas gerações, local de culto, fábrica de valores, imagem de vida. Briosa, enfim.

Bentes, Curado, Crispim, para não falar de tantos outros, míticas figuras do imaginário da Académica, esculpiam cuidadosamente a golpes de cinzel os talentos que a Velha Senhora projectou e que ao País se deram a conhecer. Técnicos competentíssimos, pedagogos duma escola de vida onde os valores idiossincráticos da Académica eram a razão de ser do seu magistério. Professores. Amigos. Às vezes pais. Homens de corpo inteiro. Legendas imorredoiras de uma Instituição sem igual.

A tua carreira prometia grandes cometimentos, momentos de glória. O esplendor e o encanto do teu pé esquerdo de deslumbrar que aos domingos nos oferecia criações sublimes, vaticinava contos de fadas, o sucesso na ponta da chuteira.

Na Académica tiveste a sorte de encontrar um Homem, que para além de treinador, era alguém que te queria muito, que acreditava em ti, na qualidade do teu futebol, no teu futuro promissor, alguém que tanto te queria dar a mão.

Eu sei que havia Quinito, Mito, Tomás, Barry, Rolão, Pedro Xavier e tantos outros, atletas com mais do que provas dadas ao futebol, mas o Vítor Manuel sabia que tu eras um diamante para lapidar, alguém que poderia ficar na história da Associação, como um dos seus melhores executantes, alguém a quem faltava jogar para conseguir a plena afirmação, o reconhecimento da tribo, a consagração dos media.

ImageAs coisas lá iam andando, ponto aqui ponto acolá, a costumeira dificuldade num tempo de grandes diferenças entre clubes. Mas numa certa tarde de Março do teu e meu desencanto, tudo se desmoronou. Aquele que te acabara de lançar na alta roda do futebol lusitano, pagou caro com o despedimento a aposta numa juventude que nós já sabíamos e o futuro se encarregaria de evidenciar aos cépticos de então, de grande qualidade. Dimas, Márito, Rocha, Tó Luís tiveram percursos notáveis, o denominador comum da formação, o detonador de talentos chamado Vítor Manuel. Outros, por sortilégios da vida, que não por menor qualidade, ficaram pelo caminho. Paulo Antunes, por exemplo.

Quando tudo parecia estar lançado para o êxito, veio o corte radical. O esconjuro. O aviltante esquecimento. O lápis azul da censura na folha dos convocados, fruto de indecifráveis critérios, talvez técnicos, porém, quase obscenos. Com um belga por legenda e um carimbo por epitáfio. Vieram os empréstimos a minúsculos pontos referidos em mapas e veio a nova lesão que te dizimou o futuro. Que terminou abruptamente com a tua carreira. Que acabou de vez com os teus sonhos. Que nos roubou a magia das tuas performances.

Relembro agora as tuas fintas estonteantes, o ziguezaguear constante por entre os adversários, as patadas criminosas com que te paravam. Pelos meus olhos desfilam jogadas de espantar, quartas à noite, domingos de manhã, tanto, tanto futebol. Que agradeço e recordarei.

Vinte anos depois, obrigado Jorge.


*Dr. André Campos Neves